Graças ao cartão de milhagem de luxe gold platinum, Marcello Senna foi um dos primeiros a ocupar sua poltrona apertada na área destinada à classe plebe rude. Não se usava executiva na sua multinacional brasileira. Apesar dos preços exorbitantes, o vôo Houston – Rio da Continental Airlines parecia cheio naquela sexta-feira. No fundo uma esperançazinha de que a poltrona ao lado ficasse vazia. Até que a moça com uma camiseta escrita Carioca em forma de Coca-cola sentou-se na janela ao seu lado.
Cansado da estafante semana de reuniões, Marcello não estava lá pra muita conversa. Mas não pode evitar. Pouco versada no idioma de Barak Obama a carioca estava feliz por encontrar alguém da terrinha. Depois dos obas e olás, de onde vem pra onde vai, a conversa chegou rapidamente na família. Tantos filhos, esposa assim, ex-marido assado, ela trabalhava no INPI e vinha de San Diego onde foi ver o namorado. Marcello não entendeu direito, estava mais preocupado com o Sudoku inacabado na mesinha.
O papo continuou durante o jantar, sobre os pais de ambos e com Marcello mais interessado. Ela contou que sua mãe, que tanto cuidara da neta mais velha, começou a sofrer com a perda da memória. Era roubada no supermercado onde a enganavam no troco, se perdia na rua …
Marcello sabia bem o que era isso.
Seu pai cuidara de tudo até o Alzheimer tomar conta logo após a perda da esposa. De homem educado e marido atencioso tornou-se um velho impossível. Esquecia-se de tudo, até de que um homem não pode fazer certas coisas naquela idade.
Marcello já não sabia mais o que fazer e muito menos as cuidadoras que não conseguiam se safar dos assédios. Teve que despedir uma delas que gostou da brincadeira e dos pequenos favores financeiros que se auto-outorgava.
O neurologista recomendou terapia musical e atividades em um lar de idosos. Assim foi feito, mas o incorrigível foi convidado a não voltar lá na semana seguinte. As velhinhas não podiam com ele. Na sua versão ele “só dizia uns galanteios”. O que ele não contava, até porque não se lembrava, é que aos galanteios somavam-se bolinações.
Dois largos bocejos, Marcello virou-se e dormiu suas quatro ou cinco horas de praxe. Acordou com a moça quase sentada no seu peito na tentativa de ir ao banheiro. Tudo bem, já iam mesmo servir o café da manhã.
Desgraças a parte, o fato é que riram bastante das situações tragicômicas dos idosos. A carioca tinha um ótimo senso de humor e filhos uns dez anos mais novos que os do Marcello, que continuava meio encafifado com a história do namorado em San Diego.
Quando Marcello acabou de falar da sua Estela e dos gêmeos, a moça se sentiu a vontade para contar a verdadeira história da sua vida. O cara em San Diego, brasileiro já perto de voltar pra casa, era sua primeira recaída diante da raça de crápulas que são os homens.
Conhecia o ex-marido desde o parquinho do Fluminense. Estudaram no mesmo São Vicente de Paulo onde se viam de vez em quando. Jovens profissionais, por caminhos diferentes chegaram ao mesmo departamento do Instituto Nacional de Pesquisas Industriais, o INPI na Praça Mauá. Casaram alguns anos depois. Com muito bom humor seguiu contando sua história para um agora interessadíssimo Marcello Senna.
Três filhas em idade escolar depois, a carioca começou a desconfiar de alguma coisa. m pequeno verde foi o suficiente para a colega de trabalho contar tudo ou, pelo menos, muita coisa. O tudo mesmo ela foi sabendo aos poucos. O sacana do marido não só teve duas namoradas firmes depois de casado como uma filha com uma delas. Pior, as duas trabalhavam há anos no mesmo departamento de patentes que eles. Com idade parecida com a da sua menorzinha, a filha da outra freqüentava as festinhas de aniversário em sua casa desde sempre.
Marcello pensava, “meu Deus, esse cara é bom!”.
Certa noite mandou as meninas pra casa da mãe e chamou o marido na chincha.
Ele negou… era tudo mentira, queriam derrubá-lo do cargo de gerente, que isso e aquilo. Mas tava difícil, ela sabia de tudo, ou quase tudo, com detalhes. Ele insistiu que a amava, que queria seguir com a família, que isso não se repetiria…
(“Isso o que? …outra namorada?… outra namorada no departamento?…ou seria outra filha?…”, pensava o meu incrédulo amigo).
No final concordou em sair de casa. Ela foi generosa e deu-lhe um mês pra arranjar um lugar.
Passaram-se seis semanas e o cara fingindo que as coisas estavam voltando ao normal. Ela deu-lhe um ultimato. Ele tinha que sair em dois dias.
O coitado, do fundo do seu sofrimento, ainda tentou argumentar:
“Mas por que você está fazendo isso comigo?”
Photos: Flight CO-092 (Maio 2010, by Cariocadorio); My Mom’s Hands (13/01/08, by Ann Gordon, Flickr Creative Commons); Quem, eu? (Maio 2010, EP, by Naj Olari, Flickr Creative Commons)