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O Tapa-olhos

22 de abril de 2020

Antigamente as companhias aéreas distribuíam em voos internacionais.  Vinha em uma bolsinha com outros apetrechos. Pente, dentifrício com escova, meias para aquecer os pés e o tal tapa-olhos. Tinha até pra quem sentava na classe plebe rude, aquela entre a econômica e a de fumantes.   Atualmente é senta aí e se vira para arrumar lugar pros joelhos. Tem gente que adora mas eu nunca me acostumei a usar tapa-olhos.  Me atrapalha mais que ajuda a dormir.

Mas eu lembro de ter usado. Lá pelos idos de 1966, talvez 67 ou 70, minha mãe fez um tapa-olhos pra mim.  Não era pra dormir.  O Raimundo Nonato, técnico de basquete no Fluminense, mandava a gente atravessar a quadra quicando a bola com o tapa-olhos.  “Mais rápido, mais rápido…” gritava. A gente perdia a bola, dava cabeçada no outro mas o fato é que fomos aprendendo.  A quicar sem ver a bola e a enrolar o técnico.  Sempre tinha um espacinho livre de tapa-olhos.

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Tempos de DS

O último que ganhei de uma aérea já tem bastante tempo.  Foi numa rara viagem de executiva. Os outros sumiram no tempo mas este, por sorte, ficou. São destas voltas que o mundo dá.

Nunca pensei que o tapa-olhos seria tão útil para ir ao supermercado.

Foto by Cariocadorio; “tapa-olhos no supermercado”, Abril de 2020

O que você deseja para 2021?

21 de abril de 2020

Posta uma foto da sua última viagem, aprende a fazer sua máscara, quantos quadrados tem na figura?… Nas redes sociais proliferam passa-tempos que bem só servem pra isso, passar o tempo. Dou atenção a quase todos.

Mas uma pergunta me chamou atenção:  “O que você deseja para 2021?”  É como se o 2020 que mal começou já tivesse acabado.  Pior que faz sentido. Vamos lá.

Minha primeira reação foi desejar que o próximo ano comece muito depois do fim desta praga, que traga saúde e paz para todos, a maior safra de grãos de emprego da história … De repente sinto uma tremenda raiva de tudo e de dentro de mim vem um gigantesco foda-se.

Que se danem todos e tudo. O Brasil, as cidades, as pessoas com seus achares e querências, o meio ambiente, tudo enfim. Eu vou morar em Secretário ou São João de Nepomuceno com outra cara, outro nome e, claro, outro CPF.  Quem sabe ser um novo Mestre Jonas? Deixo pra trás minhas paixões, meus amores, meus amigos reais e virtuais, curtidas e carinhas, dispenso até minha aposentadoria.

Que se dane o Brasil. Que diferença faz se te queimam as florestas ou as inundem com inviáveis belos montes ou com a lama assassina de um dejeto qualquer.  Que se explodam tuas metrópoles em guerras de milícias e traficantes.  Pouco me importa se é um louco que te governa ou se te elegeste um corrupto. Que me importa teu comandante se já não te quero navio?

Dentro da minha baleia vou comer tapioca com queijo coalho, feijoada e amendoim japonês.  Sem Lipitor, sem Atacand.  Que se danem a pressão e o colesterol. Minha playlist vai ter Villa Lobos, Gonzaguinha, Caetano, Clair de Lune, Adios Nonino e Zeca Baleiro. Vou rever mil vezes CSI e a nova geração de Jornada das Estrelas.  Talvez leia crônicas do PVC e da Marta Medeiros.  É isso mesmo, e daí? Depois dormir…

Meu Deus, quanta tolice.  O grito não sai pela boca. Pra que serve a liberdade se não houver fruto do que se faz com ela?  Acima da raiva há um coração maior que a vontade. Um coração que insiste em ser cativo do amor, que insiste em cuidar de todos, do mundo. Que solta um grito de alerta para as suas mazelas previsíveis, que chora com suas paixões as desgraças acontecidas. Não importa que o mundo nem saiba que este coração existe e que um dia deixará de existir.

Sem que eu queira ou possa evitar, é o coração que me embaça os olhos ao ouvir teu hino. Entendes isto ingrato Brasil? E tem o Rio de Janeiro… Ah, o Rio de Janeiro onde nasci e cresci, assim como meus pais, meu irmão, meus filhos e netos. Como explicar sofrer por um pedaço de terra se não com o coração?  Só o coração pode sentir-te a alma, chorar tuas tristezas e sorrir tuas alegrias.

E nos dias de eleições, minha pátria, meu lugar, num misto de orgulho e pavor, farei meu melhor por ti:  votar num filho da puta qualquer por ser ainda pior o outro que me propões.

E tem os laços de sangue e os que o mundo nos trouxe. Parentes de toda a vida, amigos de muito tempo, tantos recentes e aqueles que nunca nos vimos.   E tem que cuidar da casa, cuidar de bichos e plantas. E assim a gente vai em frente, cuidando do hoje e do amanhã.  Se bem que, se o deixassem em paz, talvez o amanhã se cuidasse melhor sozinho assim como o ontem se cuidou.

Em vez da liberdade, da vida solitária, há que amar, cuidar e vigiar. E quem se dana mesmo é o coração porque, no fim, alguém tem que se danar.

Baseado na crônica “Talvez o último desejo”, Raquel de Queiroz, 1949.