O que chamou sua atenção foi um princípio de bulling lá pelo terceiro ano ginasial (só aprendemos que essa velha maldade se chama bulling recentemente, graças aos americanos). Sempre tinha alguém pra pegar no pé e ficar sacaneando em grupo. Muito alto, quatro-olhos ou meio tímido, qualquer diferença era motivo.
No caso do Justino não foram os óculos com lentes fundo de garrafa nem o nariz entortado pra esquerda. Tampouco por ser vascaíno, coisa rara na zona sul do fim dos anos 60. Foi por conta do nome que o Justino teve seu tempo de “pele” daquela turma do Pedro II. Eram muitos Eduardos e Paulos, vários Luiz Alguma Coisa mas Justino, só ele. Mais, nas listas de todas as turmas do colégio coladas no vidro do refeitório só aparecia um Justino. Ele.
Por que? Não tinha parentes próximos nem algum Justino famoso que justificasse. Por alguma razão, respeito talvez, nunca perguntou aos pais. Naquele tempo tinha esse negócio de respeitar os mais velhos. A zoação (esta aprendemos com os paulistas) passou e o Justino não tocou mais no assunto.
Na terça passada entrei no Paglia e Fieno mais tarde que o habitual. Estava vazio, retrato da crise. No fundo do restaurante três homens de terno aguardavam o almoço. O cara junto à parede parecia familiar. Caramba, desde os tempos do vestibular, fazia mais de 40 anos. Minto, na verdade foi depois, no pilotis da PUC. Ele cursava Direito e eu Engenharia. Ainda assim, mais de 40 anos. Seria ele mesmo?
Fixei o olhar. O nariz meio torto pra esquerda dirimiu as dúvidas. Me dirigi célere até a mesa. De repente um dos homens levantou-se e se interpôs com firmeza. Estanquei assustado, percebi que o outro buscava algo no paletó e instintivamente levantei as mãos.
O que me salvou não foi o nariz torto do Justino, mas o meu próprio nariz arrebitado. O homem junto à parede freou os outros dois com um gesto, abriu um sorriso pra mim e falou:
— Batata???
Era eu. Era o Justino. O do nariz meio torto e o do nariz de batata da turma do ginásio.
Sentei-me à sua frente e nos 40 minutos seguintes atualizamos os últimos 40 anos de nossas vidas. Ele já tinha seis netos dos quatro filhos, todos meninos e eu na primeira netinha, Helena, recém-nascida. De como fui parar em Londres e por lá fiquei tantos anos. De como ele ficou no Rio e seguiu a carreira no ministério público. De repente me lembrei da história do nome.
Com brilho nos olhos, Justino contou que há pouco tempo, revirando as heranças do pai, encontrou o diploma do bisavô de quem nunca tinha ouvido falar. O documento tinha mais de metro, uma fita verde e amarela perfeitamente conservada e dizeres mais ou menos assim:

FACULDADE DE DIREITO DA CIDADE DO RECIFE
Eu, Fulano de Tal, tendo presente o termo de aptidão ao Gráo de Doutor obtido pelo Sr. Justino Resende de Sá e Oliveira, natural do Rio de Janeiro, filho de José Francisco de Sá e Oliveira, nascido no dia 2 de agosto de 1861… pelos poderes que me são outorgados…
…Mando passar ao dito Senhor, esta Carta de Doutor em Ciências Jurídicas para que com ella gose de todos os direitos e prerrogativas das Leis do Império.
Por ordem de D. Pedro Segundo
Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil
Recife, 18 de novembro de 1885.
Sabe os amigos do Justino que quase me matam de susto?
Seguranças… Recentemente, o meu amigo Justino, aliás,
V.Ex.a, Meritíssimo Juiz Dr. Justino Ventura de Sá e Oliveira,
colocou dois conhecidos políticos cariocas pra ver o sol nascer quadrado lá em Benfica.
Muito obrigado meu amigo. Seu nome é o que tinha mesmo que ser.
Foto by Cariocadorio
Nota: Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com personagens e fatos reais terá sido mera coincidência.