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A quarta idade

30 de outubro de 2011

Alegria na terceira idade

Laurinha e os irmãos discutiam sobre a terceira idade. Uma conversa divertida em meio à comemoração dos 65 anos do Sérgio, o mais velho dos quatro. Falavam sobre vantagens como furar filas nos bancos e não pagar passagem nos ônibus e dos problemas típicos da velhice. Em resposta às gozações de praxe, Sérgio afirmava que, apesar das dificuldades pra fazer xixi, estava com tudo em cima quando chegava a hora.

A certa altura o Dr. Ubiratan Latorre deixou o seu aparente isolamento de olhar fixo na televisão desligada para se juntar aos filhos. Contou que recentemente teve uma conversa sobre a terceira idade com o seu grande amigo João.

“O que mais me admira no João é a alegria de viver. Não importa a situação, ele encontra sempre uma razão para ser feliz.  O João diz que a terceira idade é a melhor fase da sua vida, aliás como diz de todas as anteriores. Mas desta vez eu achei que o João está com um problema sério.  Reclamou da dificuldade de lembrar umas coisas e me disse na saída: “

“É Bira, acho que eu já estou entrando na quarta idade. E esta quarta idade não promete ser tão boa como as três primeiras”.  

Pela enésima vez os irmãos escutaram seu velho pai contar esta história. 

Enquanto isso, o João já está tão à vontade lá no andar de cima que foi ele quem abriu a porta e deu as boas vindas ao Luís Mendes, grande amigo dele e do Bira.

Foto by Cariocadorio: “alegria na terceira idade” (Fev. de 2007)
O Dr. Ubiratan Latorre aparece também no artigo “A porta do elevador” (clique aqui) :  

A perseverança da memória

14 de maio de 2011

Encontrei D. Cecília muito agitada naquela tarde.  Insistia em andar pela casa embora nem mesmo forças para se levantar sozinha tivesse. Mal se lhe ouviam as nervosas instruções, a voz prejudicada pelo Parkinson. Apontava a porta da rua, queria sair.

De repente balbuciou palavras em francês. Há muito tempo não a ouvíamos falando francês. O que seria aquilo agora?  A enfermeira procurou acalmá-la. Cecília insistia, repetindo palavras sem sentido.
 

Aproximei-me bastante e finalmente entendi.  
“Suzanne…premier étage…”

Queria apenas visitar sua amiga de tanto tempo, Suzanne Bergé.  Ela morava no mesmo prédio, no primeiro andar.  Expliquei que Mme. Bergé estava em Londres mas que  telefonaria assim que chegasse. Acalmou-se sob o efeito da mentira sincera ou talvez do Rivotril que o Dr. Gilberto receita para estas situações. 

Sentou-se tranquila. Nas mãos os presentes do dia das mães.  Estava mais interessada em fazer e desfazer as embalagens do que nas colônias, sabonetes e lencinhos.  

O pensamento ia longe agora. Certamente nas tardes de cinema, ateliês e museus com as amigas.  Ou nas longas noites regadas a cigarros e vinhos no Le Jardin. Cecília e o marido participavam de intermináveis discussões sobre o ser ou não ser, sobre artes e política, seu assunto predileto. 

“Le communisme est le future de l’humanité, donc il vaut mieux que vous vous habituez”, provocava Cecília. Décadas depois ela não se absteve de admitir sua decepção quando aquela experiência que tanto admirava começou a fracassar.

A vida meio boêmia, meio deslumbrada do casal acabou quando Cecília passou a ter direito a ganhar presentes no segundo domingo de maio. 

Agora ela já não brincava com os presentes.  Dormia, cabeça de lado no espaldar da poltrona, um quase imperceptível sorriso nos lábios.  Poderia apostar que em sonhos ainda estava na sua Paris do início dos anos 60, a época mais divertida da sua vida.

Nem mesmo as grandes amizades são imunes à distância e ao tempo. Suzanne Bergé foi a amiga inseparável, ainda que achasse uma grande besteira aquele negócio de comunismo.

Quando Suzanne se foi, pouco antes da virada do século, há muito as amigas já não se viam.

Imagens, na ordem:
“The helmetmaker’s once beautiful wife” de Auguste Rodin, foto by cariocadorio em 1985. (Veja mais sobre esta escultura aqui).
“The persistence of memory”, Salvador Dali, foto obtida na internet.
“Jeunes Filles au Piano”, Piere-Auguste Renoir, foto by Cariocadorio em 1985.

A porta do elevador

23 de abril de 2010

Há mais de quinze anos o Dr. Ubiratan Latorre  repete o mesmo ritual: acompanhar os filhos até a saída e, com um sorriso no rosto, acenar até que desapareçam na janelinha da porta do elevador.

Neste dia ele se levantou cautelosamente da sua poltrona favorita assim que sua filha mais nova despediu-se beijando-lhe a testa. Sob o olhar atento da cuidadora  dirigiu-se lentamente para a saída.
De repente a rotina da sua vida passou-lhe pela mente.

Lembrou-se da sua eterna alegria de viver, do cantarolar matinal antes de ir para o trabalho com a barba bem feita. Do cuidado com os números e com a pessoas, das manhãs de golfe com os amigos de tanto tempo e das tardes de hipódromo em um passado distante. De como cuidou da casa e da esposa até que ela se fosse para sempre. Lembrou-se dos filhos, de todos e cada um de seus netos e do pequeno Daniel que acabara de nascer, seu primeiro bisneto. Do seu fisioterapeuta, da cuidadora, tão paciente e gentil, e do sem número de pílulas e comprimidos diários.

Lembrou-se até da incerteza do seu esquecer. Da leitura diária dos jornais, das notícias lidas e comentadas tantas vezes seguidas apenas para serem novidade no instante seguinte.

Segurou a porta do elevador aberta por mais um momento. Com o mesmo sorriso de sempre mas um brilho nos olhos e uma lucidez incomum nos últimos anos, fitou sua filha calmamente:  

“Por que esse filme não chega logo ao fim?”

 

Foto: A porta do Elevador (by Cariocadorio)