Archive for the ‘estórias’ Category

Intimidades num voo noturno

9 de julho de 2018

Marcello Senna ainda tinha esperança de que a poltrona da janela ao lado ficasse vazia quando a simpática moça com uma camiseta Carioca em forma de Coca-cola, pediu licença pra passar.

Cansado da semana de reuniões, Marcello bem que tentou evitar a conversa. Não conseguiu. Boas noites, obas e olás, ela não falava bem inglês, trabalhava no INPI e vinha de San Diego onde foi ver o namorado.  Marcello mais preocupado com o Sudoku inacabado na mesinha.

O papo seguiu e ela falou sobre os pais… que sua mãe, ainda nova, começou a sofrer com a perda da memória.  No supermercado a roubavam no troco, se perdia na rua … Marcello se interessou. Sabia bem o que era isso. Seu pai cuidara de tudo até o Alzheimer tomar conta logo após a perda da esposa. Desgraças a parte, riram bastante das situações tragicômicas dos seus idosos.

Dois largos bocejos, Marcello virou-se e dormiu suas quatro horas de praxe.  Acordou com a moça quase sentada no peito na tentativa de ir ao banheiro.  Tudo bem, já iam mesmo servir o café da manhã.

Perguntado Marcello falou da sua Estela e dos gêmeos que o esperavam no Rio. Foi então que Mariana, acho que era esse seu nome, se sentiu a vontade pra contar a história da sua vida.

O namorado, que fazia pós-doutorado em San Diego, era sua primeira recaída diante da raça de crápulas que são os homens.  Conheceu o ex-marido no parque infantil do Fluminense.  Depois estudaram no mesmo São Vicente de Paulo. Jovens profissionais, chegaram ao Instituto Nacional de Pesquisas Industriais, o INPI, na Praça Mauá.  Aí começaram o namoro e casaram alguns anos depois. Com muito bom humor, a carioca seguiu contando sua história para um agora interessadíssimo Marcello.

Três filhas em idade escolar depois, ela começou a desconfiar de alguma coisa.  Jogar um pequeno verde foi o suficiente pra colega de trabalho contar o que só ela no INPI parecia não saber. O sacana do marido não só teve duas “namoradas” depois de casado como uma filha com uma delas.  Pior, as duas trabalhavam no mesmo departamento de patentes que ela e a filha da outra frequentava as festinhas de aniversário em sua casa desde sempre.

Marcello não podia acreditar; meu Deus, esse cara é bom!, pensou.

Quem? Eu?

Certa noite, crianças dormindo,  chamou o marido na chincha.
Ele negou… era tudo mentira, queriam derrubá-lo da gerência, que podia explicar, que isso, que aquilo. Mas tava difícil, ela sabia até dos detalhes.    Ele insistiu que a amava, que queria seguir com a família, que isso não se repetiria…

Isso o que? …outra namorada?… ou seria outra filha?, se perguntava Marcello.

Finalmente o safado concordou em sair de casa.  Ela foi generosa e deu um mês pra ele arranjar um lugar. Passaram dois e o cara fingindo que as coisas estavam voltando ao normal. Ela deu um ultimato.  Ele tinha dois dias pra sumir de casa pra sempre.

O coitado, do fundo do seu sofrimento, ainda tentou argumentar:
“Mas por que é que você está fazendo isso comigo?”

 

Fotos: Flight CO-092 (Maio 2010, by Cariocadorio);  Quem, eu?  (Maio 2010, EP, by Naj Olari, Flickr Creative Commons)

Nota: baseado no post “Houston-Rio CO-092” de 30 de outubro de 2010.

Meu Amigo Justino

19 de dezembro de 2017

O que chamou sua atenção foi um princípio de bulling lá pelo terceiro ano ginasial (só aprendemos que essa velha maldade se chama bulling recentemente, graças aos americanos).   Sempre tinha alguém pra pegar no pé e ficar sacaneando em grupo.  Muito alto,  quatro-olhos ou meio tímido, qualquer diferença era motivo.

No caso do Justino não foram os óculos com lentes fundo de garrafa nem o nariz entortado pra esquerda. Tampouco por ser vascaíno, coisa rara na zona sul do fim dos anos 60.   Foi por conta do nome que o Justino teve seu tempo de “pele” daquela turma do Pedro II.  Eram muitos Eduardos e Paulos, vários Luiz Alguma Coisa mas Justino, só ele.  Mais, nas listas de todas as turmas do colégio coladas no vidro do refeitório só aparecia um Justino.  Ele.

Por que? Não tinha parentes próximos nem algum Justino famoso que justificasse.  Por alguma razão, respeito talvez, nunca perguntou aos pais. Naquele tempo tinha esse negócio de respeitar os mais velhos.  A zoação (esta aprendemos com os paulistas) passou e o Justino não tocou mais no assunto.

Na terça passada entrei no Paglia e Fieno mais tarde que o habitual.   Estava vazio, retrato da crise. No fundo do restaurante três homens de terno aguardavam o almoço. O cara junto à parede parecia familiar. Caramba, desde os tempos do vestibular, fazia mais de 40 anos.  Minto, na verdade foi depois, no pilotis da PUC. Ele cursava Direito e eu Engenharia.  Ainda assim, mais de 40 anos. Seria ele mesmo?

Fixei o olhar. O nariz meio torto pra esquerda dirimiu as dúvidas.  Me dirigi célere até a mesa. De repente um dos homens levantou-se e se interpôs com firmeza.  Estanquei assustado, percebi que o outro buscava algo no paletó e instintivamente levantei as mãos.

O que me salvou não foi o nariz torto do Justino, mas o meu próprio nariz arrebitado.   O homem junto à parede freou os outros dois com um gesto, abriu um sorriso pra mim e falou:

— Batata???

Era eu.  Era o Justino.  O do nariz meio torto e o do nariz de batata da turma do ginásio.

Sentei-me à sua frente e nos 40 minutos seguintes atualizamos os últimos 40 anos de nossas vidas.  Ele já tinha seis netos dos quatro filhos, todos meninos e eu na primeira netinha, Helena, recém-nascida.  De como fui parar em Londres e por lá fiquei tantos anos.  De como ele ficou no Rio e seguiu a carreira no ministério público. De repente me lembrei da história do nome.

Com brilho nos olhos, Justino contou que há pouco tempo, revirando as heranças do pai, encontrou o diploma do bisavô de quem nunca tinha ouvido falar.  O documento tinha mais de metro, uma fita verde e amarela perfeitamente conservada e dizeres mais ou menos assim:

FACULDADE DE DIREITO DA CIDADE DO RECIFE

Eu, Fulano de Tal, tendo presente o termo de aptidão ao Gráo de Doutor obtido pelo Sr. Justino Resende de Sá e Oliveira, natural do Rio de Janeiro, filho de José Francisco de Sá e Oliveira, nascido no dia 2 de agosto de 1861… pelos poderes que me são outorgados…

…Mando passar ao dito Senhor, esta Carta de Doutor em Ciências Jurídicas para que com ella gose de todos os direitos e prerrogativas das Leis do Império.

Por ordem de D. Pedro Segundo
Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil  
Recife, 18 de novembro de 1885.

Sabe os amigos do Justino que quase me matam de susto?

Seguranças…  Recentemente, o meu amigo Justino, aliás,
V.Ex.a, Meritíssimo Juiz Dr. Justino Ventura de Sá e Oliveira,
colocou dois conhecidos políticos cariocas pra ver o sol nascer quadrado lá em Benfica.

Muito obrigado meu amigo.  Seu nome é o que tinha mesmo que ser.

 

Foto by Cariocadorio
Nota:  Esta é uma obra de ficção.  Qualquer semelhança com personagens e fatos reais terá sido mera coincidência. 

A Fábula da Vespinha

18 de dezembro de 2015
A Vespinha

A Vespinha

Marcello Senna fazia a barba quando percebeu no espelho uma vespinha que sobrevoava sua careca. Apenas espantou o inofensivo inseto que foi se acomodar na luminária. Mas não tolerou um segundo voo mais próximo. Com um tapa certeiro o fez cair dentro da pia. Molhada, a vespinha tentou subir pela pia mas foi arrastada pelo redemoinho provocado pela torneira aberta por Marcello. Seguro de que o infame e ousado inseto havia descido irrecuperavelmente pelo ralo, Marcello Senna continuou sua rotina matinal.

Minutos mais tarde voltou ao banheiro. Para sua surpresa, lá estava a vespinha, se arrastando pela louça da pia e cumprindo seu dever de perseguir a vida enquanto as forças permitissem.

A cena fez Marcello Senna pensar mil coisas em um instante. Com um papel resgatou o inseto e o colocou na mesinha da varanda. A vespinha girou um pouco tonta e coçou as costas com as patas traseiras. Marcello percebeu quando se lhe abriram as asas já secas. Na terceira tentativa a vespinha alçou voo e sumiu da sua vista, segundos depois de se deixar capturar pela câmera do iphone.

Salva pelo seu próprio algoz, a vespinha cumpriu sua missão de seguir vivendo. Cumprira também a missão de lembrar ao Marcello alguns valores relativos a poder, tolerância, persistência e respeito à vida.

Moral da história:… não tenho certeza, fica a seu critério.

Copa do México, 1970

1 de junho de 2014

Ao contrário de 1966 o Brasil teria uma equipe definida bem antes da copa.  “Só feras“, garantiu o treinador.  E as feras do Saldanha foram o início de uma campanha vitoriosa.
O 1 x 0 sobre o Paraguai no Maracanã lotado em 1969 carimbou o passaporte brasileiro para o México.

O caminho da seleção até o México estaria repleto de polêmicas. Nesta época o Brasil aprendeu o que é descolamento de retina, que Pelé estava velho que Garrastazu convocava jogador e que, como já sabíamos, celacanto provoca maremoto.

Enquanto a seleção treinava no campo do Fluminense, a garotada de Laranjeiras corria atrás dos autógrafos. Alguns ficaram registrados nesta tabela, inclusive o de um tal de Edson.

Autógrafos de 70

O fato é que chegamos ao México com Zagalo no comando e cheios de desconfiança daquela que depois provaria ser a melhor seleção de todos os tempos. Só se falava no futebol força europeu. Os brasileiros não estariam preparados para vencer aqueles que tinham saúde de vaca premiada.  Na primeira fase teríamos que enfrentar  3 europeus, inclusive a Inglaterra, campeã do mundo. Era realmente um grupo difícil.

Pela primeira vez o Brasil se deslumbrava com uma transmissão de copa do mundo ao vivo na televisão. E assistimos o tcheco Petras fazer o primeiro gol sobre nós.  Ao vivo pudemos ver os gols que o Pelé não fez: o chute do meio de campo que passou raspando e o drible sem tocar na bola sobre Masurkievsky, goleiro do Uruguai.  Vimos a trama, inciada por Tostão caído no chão,  que resultou no 1 x 0 sobre a Inglaterra e a classificacão para as oitavas-de-final. Vimos um show inequecível da arte de jogar futebol.

Tabela da Copa do México

Na seqüência foram dois sul-americanos.  Peru e Uruguai.  Vinte anos depois o Uruguai.  Foi um jogo tenso pelo seu histórico embora a superioridade brasileira fosse flagrante. A coisa teria ficado complicada se Clodoaldo não empatasse no finzinho do primeiro tempo. É engraçado que nem mesmo a vitória sobre o Uruguai serviu como revanche para a tragédia de 50.  Na outra semi-final, alemães e italianos se degladiaram até a exaustão com vitória dramática para os italianos na prorrogação. Azar deles.

A final decidiria a sorte da Copa Jules Rimet. Ambos com duas copas conquistadas, Brasil ou Itália levaria a taça definitivamente para casa.  A final assistida por “90 milhões de brasileiros” teve lances emocionantes e foi ponteada por gols belíssimos, como o último do saudoso Carlos Alberto fulminando o arco italiano depois de o ataque inteiro tocar bola.   Os mexicanos, que trataram o Brasil como nenhum outro povo faria, pareciam tão felizes como nós.


O Brasil, incontestavelmente o melhor no México,  levou a taça Jules Rimet  que deveríamos orgulhosamente guardar para sempre. Infelizmente alguém a derreteu e ficou com o ouro.  Hoje o que temos é uma réplica.

Médice com a Taça

A ditadura militar soube tirar proveito desta conquista.

A propaganda ufanista e o caminhão de dinheiro que inundou o país sustentavam o milagre brasileiro. As décadas seguintes foram de inflação galopante, dívidas estratosféricas, estagnação econômica, uma crise social e moral sem tamanho e um jejum de 24 anos sem copas do mundo.

A história das copas por Cariocadorio:
https://cariocadorio.wordpress.com/category/copas-do-mundo/

Fotos: tabela da copa, arquivo Cariocadorio; fotos obtidas da internet.

A mulher e suas razões irracionais

20 de agosto de 2012

“Você vai pensar em mim todos os dias?”, perguntou Marilda Helena, languidamente, com a boca molhada pelos beijos do amado.

“Não sei”, respondeu Gabriel, de pronto.

“Como assim, não sabe?”

“Não sei, eu nunca pensei no assunto… Não posso afirmar uma coisa que não tenho certeza.”

Atordoada, Marilda Helena não disse mais nada. Mesmo à distância pensava nele todos os dias, várias vezes por dia. Como ele pode ser tão insensível? 

Partiu naquela noite com a incerteza a martirizá-la. Ficaria longe do amor de sua vida por quinze dias e ele nem pensaria nela.  Ela era mesmo uma idiota.  Além de pensar nele todos os dias fizera a besteira de confessar.  Pior ainda foi perguntar se ele sentia o mesmo.  Apenas para ele, triunfante, responder “não sei”.  Aquele mesmo “não sei” que torturava sua mente. Se ao menos não tivesse perguntado…

Na escala no Panamá, já concluíra que ele havia perdido o interesse por ela. Talvez nunca tivesse existido amor.  Talvez um interesse passageiro, um desejo que o tempo havia se encarregado de arrefecer. Como pode pensar que este marido seria diferente dos seus três primeiros? Como pode ter sido tão idiota ao acreditar que aquilo sim, afinal,  era um amor verdadeiro?

Quando o avião pousou em Nova York, já tinha preparado o troco. Ele ia pensar nela sim, todos os dias, várias vezes por dia. Desta vez não ia telefonar, nem enviar e-mail, nem pombo correio, nada. Queria ver se depois de uma semana sem notícias ele ia continuar sem pensar nela. A menos, é claro…
“Ai meu Deus, que diferença fará se ele não me ama mais?”   

Ao chegar ao hotel, já tinha certeza: o amor havia acabado!  Gabriel continuava com ela por hábito, conformismo, talvez até mesmo pena… Sentiu que sua vida acabaria com o fim daquele amor. Como viver sem ouvir “oi, querida”, “eu te amo tanto” e tantas outras coisas que aqueciam a sua alma?  

Mudou de planos.  Sim, cortaria os pulsos. O remorso o faria pensar nela todos os dias.  E sofrer todos os dias. Não, cortar os pulsos seria pouco. Precisava ser mais traumática.  Decidida, dirigiu-se à janela do sofisticado hotel no coração da grande maçã. Assim seria mais fácil acabar com aquele sofrimento.  Aos prantos, Marilda Helena, abriu a janela e viu a cidade lá embaixo. Tudo parecia pequeno e desfocado, a vista anuviada pela torrente de lágrimas.  De repente começou a reconhecer alguns luminosos. Prada, Armani, Versace…
“Pensando bem, a vingança pode ficar pr’amanhã”, pensou. 

Munida de bolsa, casaco e cartões de crédito, a mão na maçaneta, pronta para sair, toca o telefone.  Com seu sofisticado sotaque britânico, forjado durante o doutorado na Bristol School of Sociology, ela atendeu:
“Hello?”.

“Oi, meu amor.  Liguei para te dizer que refleti, anotei cada vez que sua imagem vinha à minha mente e cheguei à conclusão que sim: eu penso em você todos os dias, em média umas duas vezes e meia”, disse com a voz dulcíssima, um apaixonado Gabriel.

Marilda Helena, mais feliz do que nunca e sem forças para responder, pensou:
“Meu Deus, e eu jurei que não casaria de novo com um engenheiro?”

O ponta-esquerda Bouças

25 de junho de 2012
Fluminense, 1929

Fluminense, 1929

Naquela fria noite de inverno da serra carioca tive uma insólita oportunidade de conversar com um homem muito pouco comum. Wlademir Bouças era o seu nome.
Transcrevo aqui momentos daquela improvável entrevista:   

“Wlademir, me conta um pouco sobre a sua origem.”

“Eu sou o filho mais novo de uma família de imigrantes.  Minha mãe era portuguesa e o meu pai galego. Ele veio para trabalhar nas Docas de Santos.  Foi lá que eu nasci, em Santos, em 1908.
Anos depois, quando meu pai foi chamado para o porto do Rio de Janeiro, nos mudamos para Copacabana.”

“E o que levou você a jogar futebol no Fluminense?”

“Eu morava na Barão de Ipanema e jogava futebol na praia.  Foi o meu amigo Preguinho que me levou pra jogar no Fluminense.  Eu fui e acabei entrando para o time.  Cheguei à equipe principal porque eu chutava com as duas e me adaptei bem à ponta-esquerda.”   

“E isso não atrapalhava seus estudos e a carreira de militar?”

Por um certo tempo não tinha problema, o futebol era amador e não era difícil conciliar o futebol com a Academia Militar.  Era um constante ir e vir entre as Laranjeiras e Marechal Hermes.  Com o advento do profissionalismo, entretanto, eu tive que sair do Fluminense. Fui jogar no São Cristóvão que continuava amador e por isso era chamado o time dos cadetes.”

“Por que você não quis ser um profissional do futebol?”

“Quando concluí a Academia e me formei tenente, senti que a minha vocação era mesmo a carreira militar.  Foi uma escolha natural.”

Mas aí começa uma série de aventuras, não é verdade?  Como a sua atuação na revolução de 1932, em oposição ao Presidente Getúlio Vargas, ironicamente um grande amigo do seu irmão Valentim.”

“É sim, mas essa é uma história longa.  Vamos deixar pra contar outro dia, está bem?  Essa velha carcaça já está um pouco cansada por hoje.”

 O fogo da lareira arrefeceu subitamente e o ar se tonou muito frio.  Senti que era hora de buscar o caminho de casa.  Notei um envelope no banco do carro.  Dentro dele a foto do time do Fluminense de 1929 que ilustra este artigo.

Fotos: Time do Fluminense, 1929.  Arquivo pessoal de Fernando Bouças, não pode ser reproduzida sem autorização prévia. Lareiras, by Cariocadorio.

A perseverança da memória

14 de maio de 2011

Encontrei D. Cecília muito agitada naquela tarde.  Insistia em andar pela casa embora nem mesmo forças para se levantar sozinha tivesse. Mal se lhe ouviam as nervosas instruções, a voz prejudicada pelo Parkinson. Apontava a porta da rua, queria sair.

De repente balbuciou palavras em francês. Há muito tempo não a ouvíamos falando francês. O que seria aquilo agora?  A enfermeira procurou acalmá-la. Cecília insistia, repetindo palavras sem sentido.
 

Aproximei-me bastante e finalmente entendi.  
“Suzanne…premier étage…”

Queria apenas visitar sua amiga de tanto tempo, Suzanne Bergé.  Ela morava no mesmo prédio, no primeiro andar.  Expliquei que Mme. Bergé estava em Londres mas que  telefonaria assim que chegasse. Acalmou-se sob o efeito da mentira sincera ou talvez do Rivotril que o Dr. Gilberto receita para estas situações. 

Sentou-se tranquila. Nas mãos os presentes do dia das mães.  Estava mais interessada em fazer e desfazer as embalagens do que nas colônias, sabonetes e lencinhos.  

O pensamento ia longe agora. Certamente nas tardes de cinema, ateliês e museus com as amigas.  Ou nas longas noites regadas a cigarros e vinhos no Le Jardin. Cecília e o marido participavam de intermináveis discussões sobre o ser ou não ser, sobre artes e política, seu assunto predileto. 

“Le communisme est le future de l’humanité, donc il vaut mieux que vous vous habituez”, provocava Cecília. Décadas depois ela não se absteve de admitir sua decepção quando aquela experiência que tanto admirava começou a fracassar.

A vida meio boêmia, meio deslumbrada do casal acabou quando Cecília passou a ter direito a ganhar presentes no segundo domingo de maio. 

Agora ela já não brincava com os presentes.  Dormia, cabeça de lado no espaldar da poltrona, um quase imperceptível sorriso nos lábios.  Poderia apostar que em sonhos ainda estava na sua Paris do início dos anos 60, a época mais divertida da sua vida.

Nem mesmo as grandes amizades são imunes à distância e ao tempo. Suzanne Bergé foi a amiga inseparável, ainda que achasse uma grande besteira aquele negócio de comunismo.

Quando Suzanne se foi, pouco antes da virada do século, há muito as amigas já não se viam.

Imagens, na ordem:
“The helmetmaker’s once beautiful wife” de Auguste Rodin, foto by cariocadorio em 1985. (Veja mais sobre esta escultura aqui).
“The persistence of memory”, Salvador Dali, foto obtida na internet.
“Jeunes Filles au Piano”, Piere-Auguste Renoir, foto by Cariocadorio em 1985.

Operação Lei Seca e o hospital

20 de fevereiro de 2011

Já passava das três da manhã quando o Dr. Carlos Eduardo de Godoy Meneses saiu do hospital.  Aquilo não seria muito diferente da sua rotina não fora Laurinha a razão da emergência.  Os hospitais particulares do Rio andam lotados. Transferência só na manhã seguinte.  Pelo menos as fortes dores devido ao cálculo renal estavam sob controle.

O caminho para casa não era longo e a perspectiva de dormir um par de horas antes de recomeçar o dia era sua maior ambição.  Só não podia esperar aquele sinalizador vermelho indicando que encostasse o carro: 


O policial identificou-se e pediu documentos. O Dr. Meneses explicou a situação, mostrou a bolsa da esposa que levava pra casa tentando escapar do procedimento completo.  O Cabo Geremias entendeu a situação, calmamente explicou que teria que cumprir a lei e perguntou:

“O senhor ingeriu alguma bebida alcoolica?”

“Não”, respondeu o Dr. Meneses um instante antes de lembrar que sim. Havia bebido umas tacinhas de vinho no jantar. 

Explicou que as fortes dores de Laurinha ocorreram de um momento para o outro. Quando concluiu que deveria medicá-la no hospital levou-a imediatamente.  Não jantou, não bebeu água, enfim nada que pudesse ajudar na eliminação do álcool.  

Os policiais tentaram ajudá-lo com as contas e as possibilidades.  Já haviam passado umas seis horas mas ainda assim havia o perigo de ser pego.  A alternativa era se recusar a soprar, pagar a multa e ficar alguns dias sem a carteira. Com Laurinha no hospital isto não seria nada bom. Durante quase uma hora conversou com os policiais. Eles até explicaram que o passar do tempo estava a favor dele mas não podiam adiar mais.    

Finalmente soprou e ficou no limite do problema.

O Dr. Meneses seguiu para casa pensando no bom trabalho dos policias.  Sentiu que entenderam a situação, cumpriram sua obrigação e ajudaram sem que, em momento algum, se fizesse menção a propinas ou vantagens escusas. Na semana em que a Operação Guilhotina expôs mais uma vez a podridão das instituições policiais, o trabalho dos agentes da Operação Lei Seca servia para que ele recuperasse a esperança de um Rio melhor.   

Artigo relacionado: “Se beber não Dirija”, clique aqui.

O Padre que sabia de tudo

28 de dezembro de 2010

Naquela pequena aldeia vivia um padre que a todos ajudava.  Era o representante de Deus, conselheiro, médico e tudo mais que o povo daquele lugar esquecido precisava.  No dia do seu aniversário, os aldeões agradecidos o presentearam com uma placa que dizia: 
“Padre que sabe tudo”

A vida transcorria tranqüila até o dia em que o rei, que jamais havia sido visto por aquelas paragens, adentrou na única rua da pequena aldeia.  Ao ver a placa em frente á igreja ficou indignado com a ousadia do padre.  Como poderia alguém em suas terras dizer-se sabedor de tudo?

Mandou que chamassem o padre ao seu castelo.  Se não respondesse corretamente a três perguntas que lhe faria o rei, seria condenado à morte na forca.

O anúncio dos arautos assombrou a aldeia.  O sacristão pensou um plano.   Como o rei jamais vira o padre, ele, o sacristão, o substituiria. Todos concordaram menos o padre, que não poderia deixar o sacristão sacrificar-se por ele.  Mas o plano do sacristão incluía embriagar o padre na véspera da viagem e seguir em seu lugar mesmo sem seu consentimento.   E assim fizeram.
                                                              
No castelo, os nobres e os sábios do rei se reuniram para uma tarde de diversão às custas do infortúnio do padre.  Sem mais delongas o rei iniciou a série de três perguntas:

“Quantas estrelas há no céu?”
“3.463.789.347.206”, respondeu sem titubear o sacristão.  
“Como saberei se esta é a resposta certa”, reagiu o rei diante de tanta firmeza.
“Os sábios de  Sua Majestade poderão contá-las e confirmar”, sugeriu o sacristão.
Os sábios preferiram concordar a admitir que não poderiam contar todas as estrelas do céu.

“Quantos cestos preciso para colocar toda a terra daquela montanha?”, disparou o rei.
“Apenas um cesto, majestade”, respondeu o sacristão.
“Quer dizer então que um único cesto poderá conter toda a terra daquela enorme montanha?”, insistiu o rei sob os risos zombeteiros da Corte.
Mantendo a calma o sacristão confirmou: “estou seguro de que sua majestade, caso assim o deseje, poderá mandar construir este único cesto do tamanho da mesma montanha e assim confinar toda a terra que nela se encontre.”
Os risos foram diminuindo enquanto o rei planejava uma terceira pergunta que logo proferiu:

“Muito bem, se quiser livrar-se da forca, o senhor deverá me dizer o que eu estou pensando”.
Fez-se o silêncio no castelo, onde a corte já simpatizava com a causa do padre.  Desta vez a resposta demorou um instante a mais em chegar. 
“Sua majestade está pensando que está falando com o padre que sabe tudo mas, na realidade, está falando apenas com o ajudante dele”.

Nos anais do reino não consta registro de qualquer enforcamento naquele ano de xxxx DC.

O valor do dinheiro

15 de novembro de 2010

O estacionamento estava lotado.
Desistiram do costumeiro croquete da Casa do Alemão, símbolo do começo do fim de semana.  Marcha a ré no Peugeot, Marcello sentiu o carro encostar de leve em alguma coisa. Não deu bola. Voltou pra estrada para cem metros depois notar que o pneu traseiro estava vazio.  Parou no posto de gasolina sem viv’alma. Um daqueles de bandeira de um posto só. O frentista, com má vontade, indicou que borracheiro só no outro posto, uns  trezentos metros adiante.    

Marcello sentiu aquele arrepio de insegurança.  No retrovisor percebeu os gêmeos inquietos.  O olhar de Estella mostrava que ela compartia o seu receio.     
Baixada fluminense, aquele carrão com uma família inteira dando mole, crianças… Eram alvo fácil. 
Seguiu arrastando-se pela pista lateral e logo chegou ao posto seguinte.  De fato, no canto do posto caindo aos pedaços, lá estava o velho borracheiro dormindo sossegadamente na porta da borracharia.

Buzinou, mas o que estava dormindo assim continuou.  Vindo não se sabe de onde, surgiu um rapaz forte com jeito de quem vai atender.  E assim foi.  Marcello pegou o manual para entender como trocar o pneu do complicado carro francês. O borracheiro foi fazendo o trabalho.  Marcelo só percebia que estava tudo certo mas quando o cara pediu o adaptador para tirar o último parafuso Marcello gelou.  Nunca tinha visto a tal peça.  Felizmente a encontrou e o rapaz concluiu o trabalho. 

Protegeu o porta-mala com um jornal e posicionou a roda trocada. Aliviado  e pronto pra seguir a viagem, Marcello perguntou quanto era.  

“Quatro reais”, respondeu o borracheiro. 

O rapaz não tinha idéia do valor do serviço que havia prestado. O quanto valia sair dali em segurança e seguir viagem.  O quanto Marcello precisava aliviar a mente da rotina pesada, do rigor do trabalho nestes últimos tempos.  No Rio de Janeiro, a vinte quilômetros dali, cobrariam muito mais só pra não lhe arranhar o carro no estacionamento.  

Na carteira Marcello encontrou três notas de dois reais e as deu ao rapaz.  Se tivesse uma de dez a teria dado. Por pouco não lhe passou a de vinte reais.  O borracheiro agradeceu e indicou onde ele poderia lavar a mão com detergente.  O local estava surpreendentemente limpo, para uma borracharia é claro.  Antes de partir, Marcello chamou de volta o rapaz, que trocava o pneu de velho Corsa, e explicou:

“Quando aparecer um carro desses, pode cobrar uns cinco ou seis que ninguém vai reclamar.”


Marcello manobrou o Peugeot 607 e saiu. 
Estella ainda comentou que o velho borracheiro continuava dormindo do mesmo jeito que estava. 

Fotos tiradas da internet.